Gaspar era rei de Markash, o país de mar azul e praias brancas. Nele moravam homens e mulheres de pele clara, cabelos negros e olhos castanhos. Aos seus portos chegavam navios de todo o mundo que vinham para vender suas mercadorias exóticas. O comércio acontecia em todos os lugares, nos mercados das grandes praças e nas pequenas lojas de uma porta só, em vielas estreitas. Gaspar, da torre do seu palácio, contemplava tudo. Como rei ele deveria sentir-se feliz: todos lhe eram agradecidos e todos o amavam. Mas, a despeito de tudo isso, havia no seu coração uma tristeza incurável, nostalgia que mais doía quando o sol se punha sobre o mar incendiando as águas.
Por mais que se esforçasse o rei não conseguia sorrir. Gaspar convocou então os seus sábios e expôs-lhes o seu sofrimento. Os sábios lhe disseram que o remédio para a tristeza é o conhecimento. “A ciência é uma fonte de alegria“, eles lhe disseram. O rei mandou então vir professores e cientistas de todo o mundo, importou livros, estabeleceu bibliotecas, montou laboratórios, construiu observatórios astronômicos. Por anos se dedicou à aprendizagem dos conhecimentos da ciência. Agora estava velho. Sabia tudo o que havia para ser sabido sobre o mundo. Mas a ciência não lhe trouxe alegria. Ele continuava sem saber sorrir.
Era madrugada. A luz do sol já iluminava o horizonte. O rei já estava desperto. Na varanda do seu palácio ele contemplava os céus estrelados. Foi então que, olhando para o oriente, ele viu uma nova estrela, estrela que não se encontrava nos mapas dos céus que conhecia. Era uma estrela diferente porque, ao contemplá-la, ele ouvia uma música de indescritível beleza que o fazia feliz. E ele sorriu pela primeira vez. Deslumbrado, mandou vir os sábios que ainda dormiam, e mostrou-lhe a estrela. Mas os sábios, olhando na direção que o rei indicara, nem viram estrela e nem ouviram a música que ele dizia ouvir. Saíram, então, tristemente, convencidos de que o rei estava realmente velho. Os anos de senectude haviam chegado. Gaspar, indiferente à incredulidade dos sábios, ordenou que se preparasse um navio para uma grande viagem, na direção da estrela.
Balt-hazar era rei da Núbia, país montanhoso onde moravam homens e mulheres de pele negra e brilhante. As montanhas da Núbia eram cobertas de vegetação luxuriante, árvores gigantescas, frutas as mais variadas, onde viviam pássaros de todos os tipos. Por todos os lugares se viam riachos de água limpa, com remansos e cachoeiras. Era um país belo e fértil. Balt-hazar, da janela do seu palácio contemplava as montanhas e florestas que se perdiam de vista e pensava: “O Paraíso deve ter sido aqui…“
Entretanto, e a despeito da beleza e da fertilidade da terra, o rei não era feliz. Havia uma tristeza no seu coração, tristeza que ficava mais forte quando os pássaros cantavam seus cantos de final de tarde. O canto deles era belo e triste: o coração do rei era belo e triste…
O rei convocou os sacerdotes, videntes e profetas e falou-lhes sobre a sua tristeza. “De que me vale a beleza do meu país se o meu coração está triste?“, ele perguntou. Os homens santos lhe disseram que a tristeza era sinal de que sua alma estava distante de Deus. “Deus é uma fonte de alegria“, eles lhe disseram. Balt-hazar, então, mandou vir de terras longínquas, místicos e teólogos que lhe ensinassem os caminhos para Deus. Contratou também arquitetos e artistas para construir novos templos. E comprou os livros sagrados de todas as tradições religiosas do mundo. Por anos a fio ele se dedicou às coisas sagradas: leu, meditou, orou… Por fim, chegaram os anos da velhice. Balt-hazar conhecia tudo o que os homens sabem sobre os caminhos que levam a Deus. Mas o seu coração continuava triste, mais triste ainda quando os pássaros cantavam ao entardecer…
Já era madrugada. Balt-hazar, como de costume, levantou-se para as orações. Ele orava olhando para os céus, morada dos deuses. Foi então que, olhando para o horizonte, no lugar do sol nascente, ele viu uma estrela que nunca havia visto. Ao redor dela havia um arco-íris. Mas o estranho é que, ao contemplá-la, ele ouvia uma música de enorme beleza, semelhante à beleza do canto dos pássaros ao entardecer. Só que, ao ouvi-la, seu coração não ficava triste. Ao contrário; era inundado por uma alegria que nunca experimentara.
O rei mandou chamar os sacerdotes, místicos e profetas. “Vejam aquela estrela“, disse ele apontando para o horizonte. “E ouçam a música que sai dela!“ Os homens de Deus olharam na direção indicada mas nem viram estrela e nem ouviram música. Deixaram então o rei embriagado de alegria e comentaram, baixinho, entre si: “Nosso rei enlouqueceu. Isso quer dizer que o fim da sua vida está chegando…“ Balt-hazar, entretanto, mandou preparar cavalos para uma longa viagem, na direção da estrela.
Mélek-hor era rei de Lagash, o país dos desertos e das areias sem fim. Lá viviam mulheres de olhos amendoados e homens rudes de barba espessa. A sua alegria eram os oásis que pontilhavam as areias com o verde das palmeiras e o frescor das fontes. Foi num desses oásis que Mélek-hor construiu o seu palácio com enormes blocos de pedra branca na forma de uma pirâmide. Pirâmides, como se sabe, são figuras mágicas que garantem a imortalidade.
A aridez e solidão da vida do deserto não o incomodavam. Na verdade, ele as considerava desafios para o corpo e para a alma. Mas havia uma coisa que o fazia sofrer: uma melancolia indefinível que sentia ao contemplar os horizontes ondulados de areia que o sol poente pintava de vermelho.
O rei convidou seus amigos para um jantar e lhes falou sobre a sua melancolia. E eles lhe disseram: “É compreensível. Nosso país é muito árido. O que lhe falta, ó rei, são os prazeres da vida. Os prazeres o farão sorrir.“ Mélek-hor então, importou prazeres de todas as partes do mundo: vinhos, frutas, iguarias, músicos, artistas, mulheres lindas… Por anos ele se dedicou aos prazeres que há. Nisso ninguém o excedeu. Mas os prazeres não lhe trouxeram alegria. E ele, já velho, rezava em silêncio: “Não quero prazeres; quero alegria, quero alegria…“
A luz da madrugada anunciava que a noite chegava ao fim. O rei, do alto da sua pirâmide, tomava uma taça de vinho. Era hábito seu contemplar o sol nascente: isso sempre lhe dera prazer. Mas o prazer da beleza sempre lhe vinha misturado com tristeza. Mas, desta vez, não sentiu tristeza. Espantou-se ao perceber que estava alegre. E a alegria lhe vinha de uma nova estrela nunca vista que brilhava no céu. E – curioso! – ao contemplar a estrela ele ouvia uma melodia que o enchia de felicidade. Mélek-hor sorriu então pela primeira vez. Deslumbrado, mandou vir seus amigos. Apontou-lhes a estrela, falou-lhes sobre a música. Mas eles, olhando para os céus, não viram a estrela e nem ouviram a música. Amigos que eram, disseram ao rei: “Querido Mélek-hor, nosso rei amado: não há estrela, não há música. Tua mente já não percebe as coisas da terra. Ela navega nas águas do grande rio, na direção da terceira margem… Choramos porque sabemos que estás de partida…“ E tristemente se retiraram, entoando um silencioso requiem. Mas o rei, indiferente às palavras dos amigos, mandou preparar os camelos para uma viagem na direção da estrela…
Gaspar, navegava do norte, em seu navio, velas enfunadas por uma brisa fresca e constante. Balt-hazar, vinha do sul, em seu cavalo, por caminhos que cortavam matas verdejantes. Mélek-hor, vinha do oeste, em seu camelo, atravessando desertos com areias escaldantes.
Três reis, tão diferentes, tão distantes, nada sabendo um sobre os outros, numa viagem absurda, com que jamais haviam sonhado, na direção de uma estrela que só eles viam, e de uma música que só eles ouviam. Sim, com certeza haviam enlouquecido…
As brisas mansas que enfunavam as velas do navio de Gaspar repentinamente se transformaram numa horrenda tempestade com ventos furiosos. Seu navio, casca de noz, foi arremessado contra um rochedo e se despedaçou. Mas o mar se apiedou de Gaspar e um golfinho o levou, desacordado, para uma praia. Recuperado do medo, agora só lhe restava continuar a pé a sua jornada. Sem alternativas, o navegador se transformou em andarilho.
Caminhou muito. E aconteceu que, depois de muito caminhar, ele chegou a uma encruzilhada. Era aí que se cruzavam os quatro caminhos do mundo: o caminho que vinha do norte, o caminho que vinha do sul, o caminho que vinha do oeste e um quarto caminho… Olhando na direção do quarto caminho podia-se ver, no horizonte, a estrela que brilhava…
Havia ali, no meio da encruzilhada, uma estalagem chamada “Os quatro caminhos do mundo“. Foi nela que os três reis se encontraram. À noite assentaram-se à volta de uma mesa para comer: pão, queijo, frutas secas, vinho. E começaram a falar. A contar suas estórias. À medida que cada um deles falava os outros se enchiam de espanto. Que absurda coincidência! Como era isso possível? Que sendo três desconhecidos, vindos de três cantos do mundo, as suas estórias fossem a mesma estória. Eram iguais. Todos haviam sofrido a mesma nostalgia. Todos haviam visto a estrela que ninguém mais vira. Todos haviam ouvido a melodia que ninguém mais ouvira. Descobriram, então, que eram companheiros. Dali para frente viajariam juntos.
E assim foi. Por vários dias caminharam… Aconteceu então que, noite já chegada, chegaram a um minúsculo vilarejo. “Que vilarejo será esse?“, perguntaram. Gravado numa pedra estava o seu nome: “Beth-léhem“ “Estranho“, disse o erudito Gaspar: “Aprendi tudo o que há para ser aprendido sobre reinos, províncias, cidades e vilas. Mas nunca vi esse nome em qualquer um dos livros que li“. Mélek-hor acendeu sua lâmpada de azeite e iluminou, com sua luz bruxoleante, o mapa que abrira sobre o chão. “Aqui está ela“, ele disse marcando com o seu dedo um lugar no mapa. “Beth-léhem. Fica precisamente na divisa entre dois grandes reinos. À esquerda está o Reino da Fantasia. À direita está o Reino da Realidade. “Já li sobre esses dois reinos nos livros sagrados“, disse Balt-hazar. São reinos perigosos. Aqueles que vivem no Reino da Fantasia ficam loucos. Aqueles que vivem no Reino da Realidade ficam loucos também, loucos de outra espécie. Somente se salvam da loucura aqueles que vivem na fronteira entre os dois reinos. Esses ficam sábios e se tornam artistas. Pois Beth-léhem está precisamente na divisa entre o Reino da Fantasia e o Reino da Realidade…“
No vilarejo todos dormiam. O ar estava perfumado com flores de jasmim e magnólia. E havia um brilho no ar – milhares, milhões de vaga-lumes pousados nas árvores. Ovelhas baliam ao longe, enquanto o seu pastor tocava uma flauta… Era uma noite de paz. A estrela iluminava uma gruta. Os reis se aproximaram. Na gruta havia vacas, cavalos, burros, ovelhas. Era uma estrebaria. Mas, convivendo com os animais, uma pequena família: um jovem e uma jovem que amamentava um nenezinho recém-nascido. Era só isso. Nada mais.
Perceberam, então, que haviam se enganado: não era a estrela que iluminava a cena. Era o nenezinho que iluminava a estrela. E olhando bem para ela puderam ver, nela refletido como num espelho, o rosto da criancinha. Aí entenderam, deixaram de ser reis e se transformaram em sábios: “O universo é um berço onde uma criança dorme!“
Notaram, então, que uma coisa estranha acontecia quando olhavam para o nenezinho: eles perdiam a sua compostura real e eram dominados por uma vontade incontrolável de rir. E quando riam, ficavam leves e começavam a flutuar. Era assim: quem visse o menino se transformava em anjo…
Os reis, em meio aos risos e vôos, olharam cada um para o outro e disseram: “Nossa busca chegou ao fim. Encontramos a alegria. Para se ter alegria é preciso voltar a ser criança…“ Ato contínuo tomaram suas coroas, capas de veludo, dinheiro, ouro, jóias – pesadas coisas de adulto – e as depuseram no chão, ao lado das vacas e dos burros… Partiram leves, ora andando, ora pulando, ora voando, mas sempre rindo.
“Vou mudar de vida“, disse Gaspar. “É horrível ter de estar estudando ciência o tempo todo. Vou me transformar em poeta…“
“Eu também vou mudar de vida“, disse Balt-hazar. “É horrível estar rezando o tempo todo. Vou ser palhaço. O riso é o início da oração“.
Ao que Mélek-hor acrescentou: “E eu descobri o prazer supremo, que vem sempre acompanhado de alegria: brincar. Vou ser um fabricante de brinquedos. Quem brinca volta a ser criança. E quem volta a ser criança está de volta ao Paraíso.“
E assim partiram, cada um por um caminho. E se você, nas suas andanças, se encontrar com um poeta, um palhaço ou um fabricante de brinquedos, pergunte se ele não tem notícias de uns três reis.
Conto de Rubem Alves